Cholitas Escaladoras, o cume é para todos
Desde 2015, dezenas de mulheres aimarás, cozinheiras nos campos base dos picos bolivianos, conquistaram as montanhas com mais de 6 mil metros do país andino. Do cume do Huyana Potosi, Acotango, Parinacota, Pomarapi, Ilimani e Sajama viram o mundo. Também do Aconcágua, a montanha mais alta do continente americano, na Argentina, a quase 7 mil metros de altitude. Uma promessa antiga traçou-lhes a meta de subir oito montanhas. Sete estão cumpridas. Só falta o Evereste, dizem. São as “Cholitas Escaladoras”.
Ladeiras e glaciares acima, vestidas com as tradicionais polleras (saia comprida e colorida, franzida na cintura e plissada, com várias capas que lhe dão volume), meias grossas e mantas bordadas de lã, reivindicam o seu lugar numa sociedade que as discrimina, aparta e viola. Cabeça ao alto, lá para onde o céu parece nascer nos picos nevados, gritam em todas as direções que também elas contam.
Em finais de abril último, o grupo que fez ecoar força e voz pela primeira vez há oito anos, recebeu o Prémio Internacional Guardiãs da Tradição, no fórum FéminAs 2023, em Espanha. O galardão reconheceu-as como “mulheres sem limites”, “exemplo de superação e modelo de inspiração”. “É um prémio para todo o mundo, pela nossa força e o nosso poder. Temos que despertar para tudo o que somos capazes de fazer”, disse na altura Ana Lía Gonzáles, uma das “Cholitas Escaladoras” bolivianas.
Para lá das montanhas
A história começou há muitos, muitos anos, mais de quatro décadas, em El Alto, próximo de La Paz. O vento corria, solto e gelado, no então pequeno povoado. A casa de Lidia Huayllas, umas das poucas a pontilhar essas paragens do planalto dominado pelos gigantes rochosos Chacaltaya e Huayna Potosí.
A visão dos picos que rompiam as nuvens era hipnótica. “Nessa altura, para mim as montanhas eram só um sonho. Era muito bonito vê-las, mas não podia lá chegar. Estavam tão perto, mas eram inalcançáveis”, conta Lidia numa entrevista à Rádio Ambulante.
Este mundo proibido “por cima do próprio céu” deu-lhe asas imaginárias e heróis imprevistos. “Aos 10 anos, corria da escola para ver na televisão o meu personagem preferido, o Superman. Fascinava-me que pudesse voar”. Tentou imitá-lo ao seu jeito. Ganhou o “gosto de subir e saltar paredes e muros”, não sem raros acidentes, nódoas negras e ralhetes maternos.
A família de Lídia era indígena aimará. Como a mãe, desde pequena assumiu a tradição de chola, como são conhecidas as indígenas ou mestiças bolivianas que se vestem de forma muito particular: cabelo aninhado em duas tranças longas, joias nas orelhas, mãos e peito, chapéu de coco com aba plana, blusa ajustada, manta bordada, sapatos planos e a famosa saia pollera, um dos símbolos máximos de identidade, orgulho e resistência indígena.
Reivindicar um lugar na sociedade de então não foi fácil. O traje tradicional estava proibido em muitos sítios, a começar pela escola. A própria palavra, chola, era uma arma de arremesso, uma ofensa, escárnio (cinquenta anos depois, durante o regime provisório de Jeanine Añez, entre 2019 e 2020, após o golpe contra Evo Morales, a conotação negativa do termo chola ressurgiu com toda a força, reforçando o menosprezo do governo interino pela população indígena, forte apoiante do presidente deposto).
Com a identidade bem marcada, e da qual não abria mão, durante a juventude, Lidia trabalhou no mercado local com a mãe, cozinheira tradicional. Aprendeu a arte e os segredos do fricassé de frango e do anticucho, espécie de espetada de carne com batatas.
Por volta dos 20 anos, casou-se com Hélio que, como muitos homens da região, era guia de montanha. O jovem levava turistas estrangeiros ao cimo dos 6096 metros do famoso Huayana Potosi, a pouco mais de 25 km da capital boliviana.
As histórias que Hélio trazia para casa reavivaram em Lidia as memórias do Superman, o sonho de voar e de chegar lá alto, onde a neve era perene. Durante 15 anos, guardou silêncio. “Nessa altura, não havia tanta liberdade de as mulheres dizerem que queriam fazer isto ou aquilo”, recorda. Até que não aguentou mais. “Um dia, atrevi-me a dizer-lhe que queria ir com ele à montanha. Para minha surpresa, gostou da ideia. Disse que podia ser cozinheira no Campo Alto, o acampamento na subida para o Huayna Potosi”.
Em 2001, aos 35 anos, começava uma nova vida como cozinheira no último refúgio da escalada. Pela primeira vez, alcançava os 5100 metros de altitude, a apenas 900 metros do cume da montanha. “Foi uma emoção muito linda”, recorda.
Tímida, observou por anos a fio o vaivém de gente de todo o mundo. Entre línguas e formas de estar diferentes, era o “sorriso dos turistas” o que a mais intrigava. “Quando chegavam ao refúgio, depois de subir a montanha, vinham sempre muito felizes e eu perguntava-me ‘por que chegam tão contentes?’”
Como um condor
A resposta demorou outros 15 anos a chegar. Quando fez 50 anos, a vida enfrentou-a: “é agora ou nunca”. Foi em 2015. “Sempre quis chegar mais longe. Por isso ganhei outra vez coragem e decidi que queria subir à montanha. Não sabia se conseguiria, mas não queria ficar com a dúvida”, comenta.
Era uma decisão pessoal com projeção coletiva. “Sentia uma raiva muito grande por haver tanta discriminação contra as mulheres com pollera. Havia muito racismo, feminicídios constantes contra as cholas, cometidos pelos maridos e companheiros. Queria demonstrar que nós, mulheres, também podíamos subir à montanha, usando a nossa vestimenta tradicional para pô-la lá no alto com todo o orgulho, onde todos a pudessem ver”.
Rapidamente recrutou quatro amigas que alinharam no plano – cozinheiras, carregadoras de equipamentos de escalada e esposas de guias que trabalhavam no refúgio, a maioria à volta dos 40 anos, outras com mais de 50. “Vamos ver o que lá há”, espicaçou-as.
Mais uma vez, o esposo apoiou-a e ofereceu-se, até, para ser o guia do grupo. Emprestou a Lidia umas botas com grampos “bem velhitas e demasiado grandes, que nem com três meias calçavam bem”. Receberam noções básicas de escalada e um curso rápido de sobrevivência.
A 16 de dezembro de 2015, Lidia caminhou pela primeira vez até ao refúgio do Campo Alto, não para cozinhar, mas como mais uma escaladora. Nessa noite, queimou folhas de coca numa fogueira e pediu autorização à “mãe terra e aos guardiães”, para subir a montanha. “Deixai-nos subir, dai-nos passo, por favor, queremos alcançar outros cumes, podeis dar-me passo?”, rezou à Pachamama, em ladainha.
Às duas da manhã de 17 de dezembro, Lidia e dez mulheres aimarás mais rumaram ao pico do Huayna Potosi com as suas saias coloridas. Sem preparação física prévia e com equipamento de escalada básico – capacete de escalada, botas (as tais velhinhas), óculos polarizados e um machado de gelo.
Passo a passo, a montanha revelava-se. “A paisagem era maravilhosa. Passámos por um caminho fácil, primeiro, mas depois começaram as pedras, a neve e o gelo. Podíamos admirar glaciares, as gretas nas rochas, as lagunas. A partir dos 5500 metros começou a ser mais difícil. Atravessámos um glaciar perto de um precipício e tive algum medo, mas conseguimos passar sem problemas”.
Chegaram ao cume às 7 da manhã. “Gritámos, abraçámo-nos, chorámos, foram tantas emoções! Sentia que estava no paraíso, como um condor ou uma águia que chegam bem lá nas alturas. A partir desse momento, decidi que não ia deixar mais a montanha. Senti-me a mulher mais livre do mundo!”.
“Cholitas Escaladoras”
No dia seguinte ao regresso do pico, o grupo “Cholitas Escaladoras” oficializou-se. “Fizemos uma festa para celebrar a escalada e disse às minhas companheiras: ‘por que não fazemos a segunda montanha?’ Elas aceitaram e foi então que o meu marido nos lançou o repto de subirmos oito montanhas acima dos 6 mil metros, um desafio normal entre os alpinistas. Não hesitamos.”
Por essa altura, já as cholitas estavam debaixo dos holofotes. Ainda antes da subida, a imprensa boliviana estava atenta. Um jornalista acompanhou-as na conquista do Huayna Potosi. O arrojo destas mulheres era novidade e surpresa para uma Bolívia que não dava um tostão por elas e as relegava constantemente para o mais baixo escalão social.
Apesar do entusiasmo, a fama não lhes retirou do caminho obstáculos enraizados durante séculos. Os guias da região, todos homens até à altura, fizeram-lhes a vida negra (“’como era possível mulheres roubarem-lhes o trabalho?’, pensavam”). O marido de Lidia, apoiante número um do grupo, perdeu o emprego, acusado de ser “um pau mandado da mulher”. O machismo impôs-se, uma vez mais. Algumas das escaladoras originais foram obrigadas a desistir, pressionadas pelos esposos.
Nesta rota, depararam-se até com superstições que evidenciam um preconceito selvagem. “Foi no vulcão de Acotango. Chegámos ao lugar, preparámo-nos e escalámos, tudo bem. Quando regressámos, a comunidade estava furiosa. Segundo eles, só os homens podiam escalar a montanha. Se uma mulher o fizesse, toda a neve se ia derreter”, testemunha Lidia.
Contra ventos e marés, avançaram sem deter-se. “Sempre dizíamos que não nos importava o que as pessoas dissessem, íamos porque queríamos ir e ponto final. Afinal, as montanhas não são para alguns, são para todos”. Um atrás do outro, chegaram aos cinco cumes mais altos da Bolívia.
A “teimosia” e as façanhas das “Cholas Escaladoras” começaram a gerar simpatia em todo o mundo. Em janeiro de 2019, uma produtora espanhola lançou-lhes o desafio de escalar o Aconcágua, a montanha mais alta da América, a 6902 metros de altitude. Em poucas semanas, Lidia e quatro companheiras voavam (agora de verdade) pela primeira vez rumo à Argentina.
Encontraram um clima extremo, com ventos fortes e temperaturas de 20 graus negativos. Esperaram uns dias, entre “cantigas, danças e convívio”. As fotografias das mulheres aimarás a jogar futebol na neve, a mais de 5 mil metros de altitude, e com o traje típico, tornaram-se icónicas.
A escalada foi dura. Das cinco escaladoras, apenas duas chegaram ao cume. Lidia ficou a 200 metros do objetivo, esgotada. No Aconcágua, vincaram a wiphala, a bandeira dos povos andinos. O feito das “Cholitas Escaladoras” foi notícia em vários países. Fizeram-se músicas, como o instrumental ”Cholita Climbers”, de Martin Listabarth. O documentário “Cholitas”, dos espanhóis Jaime Muerciego e Pablo Iraburu, que contou a escalada passo a passo, ganhou inúmeros prémios internacionais e amplificou-lhes a fama.
Atraídos pela história, começaram a chegar Huayna Potosina mais e mais turistas de todo o mundo para subir a montanha com as cholitas, ajudando-as a arrecadar recursos para mais excursões. O Evereste, repetem uma e outra vez, é o próximo objetivo.
“Para nós, o impacto foi muito grande”, diz Lida. “Realmente fomos capazes de quebrar essas barreiras que enfrentamos. Quisemos promover todas as mulheres e agora somos conhecidas em todo o mundo. Saber que a nossa história foi ouvida e que empoderou muitas mulheres que se sentiam marginalizadas faz-nos realmente muito felizes.”
A nível pessoal também muito mudou. Em 2021, Lidia foi eleita conselheira de El Alto, o antigo pequeno povoado que hoje é uma cidade importante junto a La Paz. Assumiu a missão de “lutar pelos direitos das mulheres com pollera” e de fazer valer a sua voz“. “Desde que comecei a escalar, já não penso da mesma forma. Tomei a decisão de fazer o que quero, e de dizer não quando assim tiver que ser”.
Na capital boliviana, ouve-se na reportagem da Rádio Ambulante, “numa escola que antes negava a entrada às cholitas com o vestuário típico, há agora um mural de Lidia. Com pollera, capacete com lanterna, corda aos ombros, um machado de gelo nas mãos e a frase que repete sempre: ‘O cume é para todos’”.
Pollera, luta e techno
Movimentos como as “Cholitas Escaladoras” estão a conseguir, pouco a pouco, mudar a perceção da sociedade boliviana sobre estas mulheres. Apesar de mais de metade da população do país se considerar indígena, desde a época colonial que as cholitas são alvo de discriminação e violência social.
Nos últimos anos, o uso da saia pollera é cada vez mais reivindicado pelas novas gerações (também por mulheres políticas que entenderam os benefícios que podem ter ao colar-se a estas personagens). As cholitas ocupam agora espaços até há poucos anos improváveis, onde se afirmam e lutam contra o racismo.
A luta livre, desporto que se disseminou do México para toda a América Latina, é um desses novos territórios onde se movem. As “Cholitas Lutadoras” dominam os ringues de La Paz e são imagem icónica da capital. Combatem corpo a corpo, mulher contra mulher (ou contra algum homem que se atreva a enfrentá-las), sempre com a roupa tradicional que as caracteriza.
Como as “Cholitas escaladoras”, estas mães, donas de casa, vendedoras, filhas ou esposas de “lutadores homens” ocupam espaços tradicionalmente masculinos para denunciar o machismo que as mata e violenta. O relato é da AFP, na reportagem “Cholitas lutadoras, techno e música andina dão vida a festa contra o racismo na Bolívia”:
“Instrumentos de sopro, tambores e pratos começam a soar por volta das quatro da tarde, em frente ao ringue, sob a brisa do clima imprevisível de La Paz no verão. Como de costume, faz frio.
Uma jovem de saia e tranças sobe ao ringue. ‘Maria, Maria, Maria!’, gritam vários homens e ninguém sabe se vieram à festa ou se foram pagos para animar a luta.
A sua adversária chama-se Anabel. Ambas são cholitas lutadoras.
O árbitro, camisa às riscas pretas e brancas, dá o sinal verde: a luta começa. Maria lança-se sobre Anabel. As polleras esvoaçam a cada queda. Ambas trocam socos no que parece ser uma coreografia da qual o árbitro faz parte.
No entanto, elas garantem que a luta é real. ‘É a minha paixão… Na verdade, levo a luta no sangue’, diz Maria José Simonini, de 20 anos. ‘Significa poder, acima de tudo, porque antes havia discriminação contra as cholitas lutadoras, mas agora já não há tanto’, garante.”
A luta entre Maria e Anabel, conta a AFP, é parte do programa da festa “Electro Preste” (preste é uma festa comunitária aimará). Depois do combate, o folclore andino e o techno juntam-se num só som, “contra o racismo”. “O objetivo é que as pessoas de distintas partes da cidade se unam e se crie integração, respeitando a nossa cultura, obviamente, mas fundindo-a com a música eletrónica”, conta Ivana Alvestegui, a DJ Iva.
“À entrada, encontramo-nos com cinco mulheres de chapéu e vestidos vermelhos que atiram confetes e serpentinas. São alunas da escola de modelagem para cholitas, que promove a vestimenta andina”, remata a reportagem.